Do “e daí?” do presidente Jair Bolsonaro ao “morra quem morrer” do prefeito de Itabuna, Fernando Gomes, se passaram 65 dias. Em pouco mais de dois meses, os mortos pela Covid-19 saltaram de pouco mais de 5 mil para 62 mil no Brasil. Os diagnósticos oficiais foram de 73 mil a mais de 1,5 milhão. Com 14% dos casos e 12% das mortes registradas no mundo, o Brasil só perde para os Estados Unidos no campeonato macabro dos países mais atingidos pela pandemia.
Não é preciso muito esforço para entender os motivos. Um militar sem formação em medicina ou epidemiologia ocupa interinamente o Ministério da Saúde há 48 dias, depois que a pandemia derrubou dois ministros por divergências com Bolsonaro. O isolamento social e as medidas restritivas não tiveram força suficiente para deter o contágio – e o novo coronavírus encontrou no Brasil um hábitat hospitaleiro.
O país não implementou um programa nacional de testes e rastreamento dos infectados, essencial para a retomada segura das atividades. Faltam equipamentos de proteção individual para profissionais de saúde. Respiradores mecânicos não chegam aonde são necessários. Mas o governo gastou recursos distribuindo 4,4 milhões de comprimidos de cloroquina, droga sem eficácia comprovada. Autoridades sanitárias investem um tempo precioso numa apresentação à imprensa para justificar a medida estapafúrdia, como se o objetivo fosse ganhar um debate nas redes sociais.
Por todo o país, governos estaduais e municipais promovem reaberturas sem nenhum respaldo científico. Bares e praias estão lotados no Rio de Janeiro, convivas conversam sem máscara em voz alta. O campeonato carioca planeja retomar jogos de futebol com torcida. Tudo do jeitinho que o vírus gosta para se alastrar.
No Distrito Federal, onde a epidemia ganhou impulso recente e as mortes têm crescido em escalada ininterrupta, o governador Ibaneis Rocha decretou calamidade pública para desrespeitar a Lei de Responsabilidade Fiscal e manter acesso a recursos financeiros da União. Mas manteve intactos os planos de reabertura total no início de agosto.
Depois dos estados do Norte, Nordeste e Sudeste, a Covid-19 agora campeia solta por Sul e Centro-Oeste, além de cidades do interior paulista, Paraná e Sul de Minas. Em Botucatu, estado de São Paulo, um shopping center chegou ao absurdo de deixar os compradores entrarem em seus corredores de carro para fazer compras nas lojas.
O maior estudo já realizado para verificar a extensão do contágio no país – tecnicamente conhecida como “prevalência” – verificou que algo como 3,8% dos brasileiros, ou 8 milhões, já tiveram contato com o vírus. Se as conclusões da pesquisa comandada pela Universidade Federal de Pelotas estiverem corretas, isso significa que mais de 95% da população ainda é suscetível à doença.
Trata-se de um terreno ainda virgem para o vírus explorar, no segundo hábitat mais hospitaleiro que encontrou até agora no planeta, depois dos Estados Unidos. Os cientistas passarão os próximos anos analisando os fatores que contribuíram para a tragédia nos dois países.
Será possível verificar até que ponto as declarações de Donald Trump e Jair Bolsonaro contribuíram para disseminar o vírus. Ou se o desprezo de ambos pelos fatos e pela ciência resultaram em mais mortes. Ou, ainda, se há correlação entre a mortalidade e o apoio político aos dois em regiões e grupos demográficos. Será possível, enfim, estabelecer se essa correlação traduz uma relação de causa e efeito. A ciência dispõe de ferramentas estatísticas para fazer tudo isso.
O mais importante, contudo, foge ao escopo da ciência. O difícil é entender se tamanha cegueira coletiva deriva de algum misterioso viés cognitivo, talvez um singular “viés de burrice” – ou se é de outra ordem. O mais difícil é compreender o que leva um ser humano, diante de tanta tragédia, de tanta tristeza, de tanta dor, a dizer frases como “e daí?” ou “morra quem morrer”.